Sol intenso, brilhante e arrogante; céu claro, sem nuvens e indiferente; ar seco, quente e preguiçoso; terra rachada, poeirenta e angustiada.
Dezembro não começou bem, apesar do feijão, do milho e do aipim parecerem animados; pessegueiros, bergamoteiras, romeira e nogueira, porém, minguam diante do olhar presunçoso do Sol. Não bastasse esse quadro brilhoso, colorido como um ícone nacional, as borboletas da couve vem religiosamente compor essa flâmula nefasta de seca, tornando a lavoura de hortaliças um campo tristemente estrelado.
Corajosamente, ela sai de casa, toma a enxada, a foice e a água, pois é preciso pisar nesta bandeira-paisagem. Afinal, a roça precisa ser limpa: inço bom é inço morto; bananeiras e pasto podados, já que o solo precisa de cobertura; as flores secas removidas, para incentivar a floração e atrair besouros e abelhas; as folhas revisadas, em prol do plantio. Afinal, não se tem saúde de verdade, sem a saúde da terra.
Apesar do fustigo celeste, ela valseia a enxada no chão, raspando picões e capins, puxando mais terra para o feijão, quebrando pés de milho… Recolhe abóboras, arranca feijões, corta um cacho de bananas e puxa aipins para o pão de amanhã.
Guarda a colheita em dois sacos e se senta numa pedra sob a sombra duma uva-japão; ali, aprecia gerânios, alegrias-de-jardim e rosas, todos vermelhos como a cor dedicada para este singelo santuário privado; localizado bem no meio da roça, para momentos justamente como esses, de repouso da labuta prazerosa de ser uma com o chão. Bebe água – como está quente! – e vai recolhendo as colheitas e as ferramentas, pois o Sol, impertinente, não lhe deixa vaguear muito tempo por entre os cultivos. Se levanta, por fim, e continua, minguando sombras aqui e ali.
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Ao sair da umbra, a pele, envelhecida, sente o Sol abraseando-lhe como suportam as pedras dos leitos de rio as águas a lhe baterem; resoluta, perene e constante, a luz lhe banha até os ossos, tentando lhe perfurar, mas suas pétalas são rocha; muitos dias ainda têm de lhe insistirem para fazê-la desistir.
A naturalidade com que enfrenta a seca é singela como os dentes-de-leão que, meses antes, cobriam-lhe o prado; apesar do corpo charqueado, uma paixão lhe salga as entranhas, e seu querer nunca apodrece, pelo contrário, paixão e querer brotam continuamente de seus poros como o orvalho no solo úmido.
A esperança com que ergue a cabeça diante dessa estrela tão necessária quão soberba, é virtuosa como o vigor dos cipós que serpenteiam camboatás, acácias, pinheiros e angicos, sem dar a impressão de se importar com o vigor das adversidades.
Antes de ir, ela se vira e vê, anacronicamente, a sua terra, como a mãe que vê no filho adulto o bebê que embalou, o menino que educou e o rapaz que casou; vê bananeiras e cítricos onde antes houve capoeira; vê feijões e batatas onde antes houve brejo; vê figueiras e nêsperas onde antes houve inço. E vê mais: vê o que ainda não foi semeado, o que ainda não foi plantado, o que ainda não foi adubado. Mas que dentro em breve será. Ela sabe.
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Ao fim do dia, ela pondera: as unhas, os frutos, os braços, os chás, os seios, as verduras, os olhos, o feijão, os pés e o milho: essas coisas que se misturam, em si mesmas, na alma, como os dedos na terra quando intentam fecundá-la. Sem dar conta, ela virou um de seus cultivos; não é ela sem eles e eles a amadurecem quando maduram.
Conta as horas, os dias, as luas, as chuvas, os meses e os anos, enganando a si mesma, como num direito natural que se tem de enganar-se: de que há algum controle sobre o Tempo a ser tomado. Mas não se dá conta disso; que valor haveria nessa consciência?
E, nesse engano, ela segue; sob o Sol, é sugada; ponderando, ela sega; no capinar, há a saga – de enfrentar o ar brilhoso e a luz seca da manhã, no verde de sentir a esperança nas folhas e na suavidade da fé nos torrões de terra.