Todos os dias, lá vêm eles, subindo o aclive que os leva de volta à sua morada. O casal idoso, vinculado pelas mãos, caminha vagarosa e suavemente, passo a passo, como os ponteiros ritmados dum relógio – não frio e preciso, nem exato e ríspido como os relógios do comércio e da indústria, com seus prazos e pressas – mas de aspecto aconchegante, belo e delicadamente imponente como os clássicos relógios de pêndulo das casas dos avós; que mais que falar do tempo, nos contam histórias.
Os esposos se apresentam, simples e cotidianamente, como obra de arte dinâmica e pública a todo olho treinado a vê-la e admirá-la. E quem a vê e admira, o que enxerga? Tanto quanto a caminhada desatenta permitir – ou a passagem indiferente de nossos veículos – uma obra efêmera é o que se enxerga, e ao mesmo tempo perene, tanto quanto a mensagem que as suas mãos e seus cabelos nos deixam.
As cãs do homem, por exemplo, contam aos meros passantes sobre a sua idade, sim, sobre os anos, os dias vividos – cujo volume se impõe como a correnteza dum rio caudaloso, torrencial: em abundância dinâmica, mas inteira e resoluta, cuja soma mede a vida, mas sem caracterizá-la nem interpretá-la. Afinal, o que significam seus quase 80 anos de idade aos estranhos ou conhecidos que por eles passam? Nada, pois a medida não explica nem descreve, apenas impressiona. E a impressão que ela deixa é forte e penetrante como um sonho de consumo – um puro e intocado pelo marketing…
À medida que sobem a ladeira, o sol, enquanto brilha sobre seus cabelos brancos, os torna mais uma nuvem no céu límpido e azul deste início de outono; impressão talvez dada pela sua camisa também azulada. Há algo de seguro, de virtuoso neste branco, que concretiza um sinal de caráter, como uma fachada esculpida e diligentemente instalada à altura de sua honra. Seus cabelos contam aos transeuntes uma história muda, que emudeceria, no entanto, se fosse externada.
A sustentação que a mulher dá à mão do marido, por sua vez, fala de sorrisos e de lágrimas indiretamente, porque, diretamente, ela fala de presença. Porque, nesse toque, não se vê um mero “estar junto”, mas um “estar junto” – com ênfase na união mais que na mera estadia. Estas mãos dadas, como o eixo que unem dois ponteiros, se exibem como um espetáculo humano, obra diligentemente artesanal em meio à cidade, um evento de destreza diária e ao mesmo tempo tão rara, que se exibe logo ali na calçada da vizinhança, para que todos aqueles que têm olhos capazes de vê-lo contemplem-no, ainda que não convidados, porque é irresistível mesmo assim.
Em pleno passeio público, o casal se entrega à necessidade e ao desejo do toque, aproveitando o prazer ofertado pela possibilidade. As mãos, autoras das ações, executoras dos desejos, unidas num ato de anelo mútuo e dedicado, porque úteis e concentradas somente para o tato a que se entregam de passagem do tempo. Numa caminhada sem fim, elas nunca se soltam – assim, ao menos, parece a quem, todos os dias, por eles passa. Aos que lhes percebem, a visão desse casal de ponteiros perdura na memória numa múltipla perenidade:
No prazer que têm no outro,
Em tocá-lo diariamente
Com mãos firmes que olhes unem
Num exemplo que se lega…